Thursday, April 26, 2007

Resto

Pequenas e profundas rachaduras se estendiam por toda aquela palma. Os braços, negros, em riste, esperavam trêmulos pela concessão do pedido. Um gole... Estava pedindo um gole da minha água de coco... Em suas mãos restavam alguns grãos de arroz que não se desprenderam da pele quando esta foi arrastada contra as calças sujas, em uma tentativa sem muito empenho, de limpar os “talhares” usados na ultima refeição. Estendi o coco com minhas duas mãos... Ele o recebeu da mesma forma... Seu dedo indicador tocou o meu no momento do passe, semeando minha pele com um grão cozido... Enquanto seus olhos se encontravam fixos na observação do volume de água que subia apressada pelo canudo, os meus miravam o arroz, que fora depositado ao acaso em meu dedo, ser lançado à lagoa, e logo devorado pelos pequenos peixes estabanados... O processo se invertera agora... O coco me era repassado tal como eu havia feito momentos antes... Novamente as mãos entram em cena, dessa vez meus dedos juntos e retos apontam para o céu, minha palma esticada revela o sinal de pausa. Ofereço para que fique com o resto... O resto... Resto... Seu olhar de resto me indaga... Insiste para que eu tome de volta o que me pertence. Minha vez de inverter o processo... Insisto para que aceite o presente... O resto... O cenho franzido se desfaz em desajeitadas rugas de agradecimento... A água que sobe apressada volta a ser o centro das atenções... um arremesso... logo o coco, agora vazio, flutua incerto sobre o espelho da lagoa... Um aceno... E ele parte... Se parte...

Wednesday, April 18, 2007

13

“Segundo a polícia, 13 bandidos foram mortos no confronto que aconteceu hoje pela manhã”.

13 negros, favelados, filhos de uma não-sociedade. Bandidos? Todos?

13 anos. A avó geme com o menino em seu colo. A cabeça tombada, aberta, mancha sua saia florida. Seu irmão treme, apavorado, sentindo o frio da pele intumescida. Grita alto quando vê se aproximar os homens de preto, com máscaras e toucas que deixam apenas os olhos arregalados à mostra. A saliva escorre dos lábios que não conseguem se fechar, travados pelo choro incontido. A avó tira o lenço que lhe prendia os cabelos para tapar o rosto do neto, desfigurado pela pele flácida que se soltou perto da orelha, rasgada pela bala. “A bala da justiça” diziam uns do asfalto.

O troféu deve ser exibido às câmeras. Tiram o corpo dos braços da velha, que tomba no chão em histeria. A camisa do uniforme é rasgada e arrancada do dorso da criança. Agora está caracterizado como bandido: bermuda, sem camisa e havaianas. Arrastam o “mais um” ladeira a baixo. As objetivas são ajustadas, clicks são disparados de trincheiras improvisadas. Os homens de preto dão uma pausa em sua marcha e expõe o “traficante” para o mundo. Olhos sedentos se agitam em torno da cena. O garoto é jogado para dentro do “caveirão”, e faz coro fúnebre a outros três jovens-negros-mortos.

Monday, April 16, 2007

Numa noite de inverno

-O que acha?
-Vagabundo!
-Sei que é vagabundo, mas quero saber o que acha que devemos fazer com ele.
-Matar ué!
-Matar? Isso pode dar problemas.
-Problema é este vagabundo na rua.
-Também não gosto disso, minha mulher já reclamou duas vezes, disse que ele pediu dinheiro quando ela saía do supermercado, e o pior, disse que fedia a cachaça.
-É vagabundo, já disse, não quer saber de trabalhar, só quer beber e curtir uma vida mansa às custas de nosso dinheiro.
-Isso é mesmo, mas não gosto muito dessa coisa de matar. Sabe como é, vou à igreja, falo com Deus, e mesmo sendo um indigente ele ainda é um ser humano.
-Humano? Isso aí não é gente não. Você o convidaria pra jantar na tua casa, sentar-se à mesa, beber um bom vinho?
-Claro que não. Mas isso não justifica. Eu não convido minha empregada pra jantar com a família e nem por isso ela deixa de ser gente.
-Mas ela é necessária, quem vai limpar tua casa? Não pode matar mesmo não.
-Mas é favelada.
-Favelada? Tua empregada é favelada? Você é maluco, chamar uma favelada pro seio de sua casa. Se eu fosse você, me livrava dela o quanto antes.
-Como assim? Vai dizer que tua diarista é garota Zona Sul.
-Não, mas não mora em favela. Tem muita diferença nisso.
-Você é muito radical.
-Você que é cego, e não vê essas coisas óbvias.
-Só acho que a gente devia pensar bem no que fazer.
-FICA PARADINHO AÍ SEU MERDA. VOU TE MOSTRAR O QUE FAÇO COM VAGABUNDO FUJÃO.
-Calma aí! Vai matar o cara.
-É isso que eu quero.
-Aqui não, pode aparecer alguém.
-Que apareça, duvido que concordem que “isso” continue sujando nossa rua.
-Mas pode ter alguém que chame a polícia.
-Pode chamar, só mostro a carteira que eles ficam quietinhos.
-Mas tem aquela dona que mora ali na frente, toda ligada à essas babaquices de Direitos Humanos.
-A gente desova no lixo e ninguém vê nada.
- Mas pode dar merda.
-Para de ser frouxo porra, já to de saco cheio dessa discussão babaca pela vida desse merda.
-Não sou frouxo, só quero ter certeza de que isso é a coisa certa a se fazer.
-Se matar, a gente recebe até medalha.
-Medalha?
-Acho que sim, já vi acontecer.
-Bom... Então mata.